Em tempos que aconselham algum isolamento prudente ou profilático, sugerir um livro que se chama "Viagens" (Cavalo de Ferro, 2019) da Prémio Nobel da Literatura Olga Tokarczuk é, em si, uma provocação salutar. A provocação acentua-se quando atentamos ao título original da obra, "Bieguni", que nos remete para todos aqueles que rejeitam a vida sedentária e acreditam que o movimento é essencial para evitar a tragédia. A literatura, ao contrário da canção dos Ornatos Violeta, tem a doença e a cura. Não é por acaso que as vendas de títulos como "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago, ou "A Peste", de Camus, têm aumentado a par das manchetes sobre a disseminação do coronavírus.
O narrador de "Viagens" revela-nos muita coisa, mas não nos revela o nome. Revela-nos que é polaco, que estudou psicologia (aliás, como a autora), mas que nunca será capaz de exercer psicologia porque rapidamente troca a análise pela autoanálise. Confessa-nos, ainda, que padece de um problema clínico, uma síndrome, a Síndrome de Desintoxicação Recorrente ou, por outras palavras, o retorno obstinado da consciência a certas ideias. A sua obsessão consiste na atração por tudo o que está estragado e rachado, e por tudo o que é imperfeito e defeituoso: formas gerundíficas, erros na criação, becos sem saída. É desta monomania que nasce este romance fragmentado (geograficamente, cronologicamente e, até, estilisticamente), composto por curtos textos sobre personagens, circunstâncias ou comportamentos que têm a sua raiz neste conceito de imperfeição. Desde o professor de física, vizinho de assento no avião, cujo buraco na meia, na zona do calcanhar, provoca uma conversa sobre a matéria escura do Universo, à irmã de Chopin, que tenta encontrar um local de repouso para o coração do compositor após a sua morte, em "Viagens" os caminhos da ficção e da não ficção, da filosofia e da literatura, enleiam-se.
A determinada altura, o narrador chama-nos a atenção para uma frase luminosa escrita num painel de aeroporto: A mobilidade é uma realidade. "Mas nós continuamos a teimar que se trata apenas de um anúncio de telemóveis", desequivoca-nos de imediato. A mobilidade é uma realidade porque a necessidade de mobilidade é em si uma Lei humana. Mais uma vez, nos dias que vivemos, a leitura poderá atenuar o frenesim das pernas que pedem caminho.
14/03/2020 às 14:00