O sucesso póstumo é vulgar no meio literário e Lucia Berlin (1936-2004) será provavelmente um dos casos mais emblemáticos de redescoberta da literatura americana do século XX. A autora publicou em vida seis livros de contos com 77 textos no total, os últimos com tiragens inferiores a mil exemplares. Porém, mais de 15 anos sobre a sua morte, é considerada uma das grandes contistas americanas. A aclamação chegou após "Manual para mulheres de Limpeza" (Alfaguara Portugal, 2016), com a crítica literária – entre o remorso e o triunfalismo – a destacar o sentido de humor cândido e cortante da escrita capaz de mitigar as situações mais trágicas e cruas. Agora, com a publicação de "Bem-vinda a Casa" (2019), que conta na edição da Alfagura Portugal com uma excelente tradução de Tânia Ganho, confirmamos que muitos dos episódios inusitados que se mantinham no domínio da ficção têm uma profunda matriz autobiográfica.
Nas primeiras páginas de "Bem-vinda a Casa", a escritora revisita um episódio de infância. O protagonista da história é um velho garimpeiro de ouro, que vivia isolado nas montanhas de Helena, capital do estado americano de Montana. Antes dos primeiros nevões, Lucia era levada pelo pai à casa de madeira do velho Johnson. Enquanto os homens conversavam e avaliavam o valor do minério descoberto, a menina ocupava-se a desfolhar revistas e a cobrir com as páginas as paredes da cabana, usando farinha e cola de água. O mosaico de páginas, ordenado discricionariamente, serviria de leitura ao velho garimpeiro durante o Inverno. Para a pequena Lucia, os múltiplos caminhos que poderiam ser percorridos saltando de página em página eram mundos por explorar.
A história do velho Johnson é apontada por Lucia Berlin como uma das suas primeiras lições sobre a literatura e as infinitas possibilidades da criatividade. Surge por duas vezes na obra publicada da autora, aparecendo ficcionada em "Manual para Mulheres de Limpeza". A imagem poética dá-nos fortes pistas sobre a relação de Berlin com a literatura e os motivos literários da escritora: o isolamento e a solidão, a palavra escrita como companhia, a vida caleidoscópica que ganha coerência e múltiplas molduras através da cola da criatividade.
Os relatos íntimos de "Bem-vinda a Casa" já estavam a ser trabalhados pela autora para edição, mas Berlin morreu antes de concluir a obra. Mantendo o título original, Jeff Berlin, filho da escritora, completou o volume com fotografias e algumas das centenas de cartas que viu a mãe escrever durante a vida. Assim, através das palavras de Lucia Berlin acompanhamos reminiscências de infância, juventude e início da idade adulta, que mapeiam o seu mundo errante de geografias e afetos. A última entrada diarística termina com uma frase inacabada, como um salto suspenso, uma última viagem, desta feita, a derradeira.
Berlin não é daquelas autoras cuja vida deva ser relegada para segundo plano, privilegiando a obra. "Bem-vinda a Casa" prova o quanto a biografia da autora surge remasterizada na ficção, com personagens e lugares originais a serem renomeados, e como a sua história pessoal influenciou a carga trágica, sábia e divertida da sua voz literária. A infância itinerante no Oeste Americano, atrás de um pai engenheiro de minas que mudava de posto de trabalho com frequência, a mãe deprimida e dependente de álcool, a adolescência cosmopolita no Chile, um avô que a violentou sexualmente e, já adulta, com três ex-maridos e quatro filhos, os trabalhos e expedientes – de mulher-a-dias a assistente de consultório médico – que encontrou para manter o sustento da família constituem um abundante material literário.
12/02/2020 às 12:00